Ex-moradores de rua contam histórias de vida e superação
por Carolina Beidacki, Débora Fogliatto, Júlia Rombaldi e Natália Otto
A aparência do lugar é cinzenta, fria. Há guaritas com guardas uniformizados e uma segurança reforçada no portão. No momento em que se supera essa primeira impressão, no entanto, o Abrigo Marlene mostra sua verdadeira face, através do rosto de Cassandra. A moça, que tem 19 anos e a abençoada inocência de uma criança de cinco, nos recebe com um abraço e um “bem-vindas”. E o universo dos moradores de rua passa a fazer mais sentido.
O Abrigo Marlene, localizado na Av. Getúlio Vargas, 40, em Porto Alegre, é o lar provisório de aproximadamente cem pessoas, sendo oito famílias completas. Mantida pela prefeitura, a instituição tem o objetivo de “recuperar e reintegrar os ex-moradores de rua, prepará-los para voltar à sociedade e a suas famílias” – de acordo com Mauro Amaral, subgerente do abrigo. A entidade, que existe desde 1995, oferece atendimento médico, serviço social e terapias ocupacionais aos usuários, além de segurança e monitoramento. “Trata-se não de uma moradia permanente, mas de uma casa de passagem”, explica Mauro. “Eles ficam aqui tempo o suficiente para se reerguer. No geral, entre 90 e 120 dias”.
Os moradores de rua são marginalizados pelas camadas mais abastadas da sociedade, tidos como um fardo, mero objeto sujando a paisagem da cidade. Vistos de perto, no entanto, essas pessoas são uma fonte de experiência e afeto. Suas histórias de vida nos ensinam lições de fé, perseverança e coragem, e muitas delas são de fazer inveja ao cinema e à literatura. Eis aqui algumas delas.
José Volnei, 52 e Kelly Soares, 23
“Mas dona Kelly, a senhora faça o favor de me explicar o que eu tenho que fazer na segunda-feira”. E dona Kelly explica. Apesar da insistência dos moradores de chamarem-na de senhora, a assistente social é uma moça de não mais que 23 anos. Em uma sala espaçosa e decorada com temas infantis, ela se faz conselheira dos moradores do Abrigo Marlene: é a gestora de suas finanças, acompanha-os ao médico e a audiências jurídicas. E cabe a ela também orientar-nos em nossa reportagem. “Poucos profissionais mostram interesse pelos moradores do abrigo, na maioria das vezes são só pesquisadores. Acho importante essa iniciativa”, diz Kelly.
Encontramos José Volnei, 52, no escritório de Kelly, resolvendo assuntos referentes à sua aposentadoria. Seu José é um ícone do Abrigo Marlene: um chapéu panamá com listras brancas e vermelhas esconde os cabelos que sobreviveram à calvície, os óculos de sol que poderiam facilmente conter o emblema da Dolce&Gabanna cobrem um olho ferido, e o bigode aloirado e bem-feito circunda a boca que nos conta histórias e não poupa as lições de moral. “Vocês repararam que aqui todo mundo fuma? Coisa feia”, seu José nos diz, aproximando-se sem precisar ser convidado a falar.
Hoje ex-morador de rua, na juventude seu José chegou a trabalhar na Universidade de Santa Maria, cidade onde nasceu. Devido a uma enfermidade no olho direito, perdeu o emprego e entregou-se ao alcoolismo. “Minha vida mudou de uma hora para outra”, diz. “Eu estava lá em cima e de repente eu caí lá embaixo”. Mudou-se para Porto Alegre em busca de uma vida melhor, mas não encontrou nada além da rua. Através de conhecidos, chegou ao abrigo Marlene, onde está reconstruindo sua vida: “quero voltar aos amigos e à sociedade. Não gosto de ficar aqui não, é muito parado. Gosto é de trabalhar”. Ele pretende terminar o tratamento de seu olho, do qual se orgulha de nunca ter desistido, e comprar uma casa com o dinheiro da aposentadoria. “Aqui é só uma passagem”, conclui seu José.
João Carlos Zanini, 55
O que João Carlos Zanini conta é mais do que uma boa pauta para uma reportagem. É material para uma enciclopédia inteira. Ou antes: um livro beatnik, artigos sobre a ditadura militar e filmes com Selton Mello. João Carlos, 55, traz no corpo marcas de sua vida épica: uma mão enfaixada e um olho ferido. Na ficha policial, uma condenação por tráfico e formação de quadrilha, de acordo com os Artigos 12 e 14, que cita de cor. No sangue, sabem-se lá quantas toxinas. E na mente, anos de experiência que parece ávido por compartilhar.
“E aí, vamos começar pelo LSD?” Assim inicia o relato de João Carlos. Durante a meia hora em que falou, manteve quem o ouvia em suspensa atenção. Ele enumera as antigas companheiras: heroína, cocaína, anfetamina, “da velha cannabis até o ecstasy”. Jack Kerouac e William Burroughs perdem. João foi paisagista, garçom na França e Inglaterra, jardineiro, técnico em informática, jornalista nanico, babalorixá e traficante internacional. Estudado, envolveu-se no tráfico e no crime organizado – cujas origens ele sabe nos mínimos detalhes – e, graças aos seus ofícios ilícitos, viajou o mundo inteiro. “O tráfico seduz muito, dá uma sensação de poder”, diz ele. Perto de João Carlos, João Estrela é um mero amador.
Nem a cadeia pôs fim às aventuras de João Carlos. Na década de 70, cumpriu pena ao lado de Flávio Alcaraz Gomes, renomado jornalista acusado de homicídio, com quem colaborou na realização de um jornal. A Voz do Cárcere foi um tablóide mensal que tratava dos direitos humanos, patrocinado pela Zero Hora e enviado principalmente às sedes da OAB de todo o país. E, com sua experiência improvisada no jornalismo, aconselha as repórteres que o entrevistam: “não se esqueçam, a persistência é 90% do objetivo”.
“Na rua existe muita gente estudada, com curso superior, que perde tudo por causa do álcool”, diz João, ele próprio uma vítima do alcoolismo. “Eu mesmo chutei o pau da barraca e fui parar na rua”. Com parte da família em Toronto, Canadá, e um irmão advogado, da vida antiga de João Carlos sobrou apenas sua inteligência. “O João é o mais culto do abrigo. Passa muito tempo na biblioteca. Sempre perguntamos para ele alguma coisa, ou pedimos para que ele leia pra gente”, diz Camila Vieira, 22 anos, residente do Abrigo Marlene e amiga de João.
A história de João Carlos mistura-se à História. Ou pelo menos assim ele faz parecer, quando relata mais a popularização do crack (“essa é a verdadeira droga do diabo! A cannabis é terapêutica perto da pedra”) do que sua própria experiência com a droga. Quando fala da prefeitura, do descaso dos políticos para com os moradores de rua, e não se inclui no grupo. Quando cita Castañeda, Paulo Coelho, Raul Seixas, Rasputin e Jô Soares, mas esquiva-se das perguntas mais pessoais. Uma vida só não é o suficiente para João Carlos Zanini.
Antônio Milton da Costa Nazário, 51 e Davi, 33
Força de vontade é o que move Antônio Milton da Costa Nazário. E o que, de acordo com ele, diferencia aqueles que conseguirão melhorar de vida dos que ficarão para sempre estagnados. “Algumas pessoas não querem vencer, ficam acomodadas. Isso se torna um ciclo vicioso”, diz ele. Seu Antônio, 51, estudou e trabalhou na RBS e na Bandeirantes. Foi graças ao álcool que perdeu tudo e acabou nas ruas – onde viveu por quatro anos, suportando o frio e a fome, mas sem nunca pedir dinheiro. “Eu trabalhava, reciclava, fazia o que podia. Mas pedir, nunca. Não é para mim”.
O estudo e a classe da qual provém tornaram seu Antônio um verdadeiro crítico das ruas. Artigos poderiam ser escritos acerca de suas opiniões e experiências. “Algumas pessoas não conseguem se recuperar, são doentes ou sem família. Mas sem trabalho, não se consegue nada”, diz, categórico. Vítima do vício, fala que é difícil desvincular-se da droga. Admite que é uma ilusão. “Quando o efeito passa, tu acordas e pensa ‘o que eu fiz? ’ Mas tu não tens pra onde ir ou o que fazer, então começa tudo de novo”.
Não só as ruas e o vício fizeram a experiência de vida de Antônio. Ele, homem calmo e eloqüente, viveu por um ano no Abrigo Emanuel, na Restinga, curando-se do vício de crack e auxiliando os profissionais do lugar a lidar com os moradores, em sua maioria, deficientes mentais. “Perto daquelas pessoas, eu percebi que eu tinha tudo, e estava me matando. Resolvi mudar”. Um companheiro de rua lhe indicou o Abrigo Marlene, que o deu base e oportunidade para se reerguer.
Seu Antônio está no último mês no abrigo e tem sua vida organizada em metas. As próximas são alugar um lugar para morar e consertar sua arcada dentária, debilitada pela vida na rua. “Aqui (no abrigo Marlene) começa tudo de novo. Quero retornar para a sociedade e me reaproximar da minha família. Com esforço, é possível. Mas tem que querer”.
Nem todos pensam como seu Antônio. Há alguns moradores de rua aos quais falta a força de vontade para mudar de vida e caem no tal ciclo vicioso mencionado pelo sr. Nazário. Um exemplo é Davi, homem loiro de 33 anos, trejeitos agitados e respostas esquivas. Apesar de alegar que é difícil viver na rua, não parece se empenhar para mudar de situação.
“Meus pais se mudaram para Terra de Areia há mais de dez anos e eu não gostei de lá, então vim para Porto Alegre e fiquei na rua. No inverno, a gente tem que ir para os abrigos”, diz ele, despretensiosamente, enquanto enrola um cigarro. E discorre uma lista de abrigos para moradores de rua pelos quais já passou e pretende visitar novamente. “Quero ver se chego aos 40 anos”, diz, em uma brincadeira perto demais da realidade.
Ilda dos Santos, 60
“Vocês vão me atender agora, ou mais tarde?”, nos pergunta Ilda dos Santos. Não, não é pretensão. É experiência. Contar a própria história já faz parte da vida de dona Ilda. Anos atrás, ela foi pauta de uma reportagem que veiculou por todos os abrigos da capital, com direito inclusive a um retrato em frente ao Abrigo Marlene: ela foi uma das primeiras moradoras do lugar. “Apesar de tudo que passei, gosto de desabafar. Me sinto mais leve contando o que passou”.
E o que passou não foi pouco. Nascida em Santa Maria, órfã de mãe, fugiu de uma vida de abusos aos sete anos de idade, escondida entre caixas de frutas na caçamba de um caminhão. Durante dois anos, foi criada por um casal de papeleiros. “Minha primeira casa foi a ponte”, conta. Foi embaixo da ponte que começou a usar drogas, aos 10 anos. Aos 13, engravidou pela primeira vez. Aos 15, foi violentada. Dona Ilda, hoje com 60 anos, já era adulta desde criança. “Eu vivia sozinha, trabalhava para me manter e manter o vício”.
O casamento também não lhe rendeu boas memórias. “Achei que a vida ia melhorar quando casei”, conta Ilda, explicando que se enganara com o marido. Maltratada, voltou para as ruas. Lavou roupa no Guaíba, dormiu sob as árvores da Rua da Praia, vendeu o corpo para sobreviver. Sofreu até encontrar o Abrigo Marlene, onde agora tenta reaver sua vida. Tem esperanças de conseguir comprar uma casa para viver com a filha, grávida de seis meses e também residente do abrigo. Pequenas conquistas significam tudo para dona Ilda: “consegui tirar o meu TRI, agora posso ir aonde eu quero sem depender de ninguém. A vida está melhorando”.
Ilda dos Santos é uma figura onírica. Sua voz é calma, e sua aparência é descansada. Não há rugas em seu rosto que denunciem as agruras de seu passado. Tão imponente é sua imagem, e tão comovente sua trajetória, que agora será eternizada nas páginas de um livro. “Semana que vem, uma moça vem aqui para eu narrar toda a minha vida. Vou virar um livro, mas não com meu nome. Só a história”. Além dessa grande realização, dona Ilda confessa seu maior sonho: quer aprender a ler e escrever, para que ela mesma possa contar em um diário sua própria história.
Enquanto Ilda dos Santos não pode, nós humildemente o fazemos por ela.
Essa reportagem foi feita no nosso primeiro semestre, para a cadeira de Técnicas de Reportagem e Formas Narrativas. Apesar de estarmos recém começando (essa foi a primeira grande matéria que fizemos) e cometermos alguns errinhos amadores, significou muito para mim. Ir no Abrigo Marlene e conhecer essas pessoas realmente me mudou de diversas formas.
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